21 gramas de alma

Quanto pesa a nossa alma?

Quanto de nós fica tatuado nas coisas que um dia criámos e cuidámos como se fosse um pedaço de dentro? Quanto de nós se imprime nas paisagens que vimos e que tocaram a nossa alma? Quanto do nosso olhar ficou preso, deixando-nos um pouco cegos para as coisas de agora? Quanto do nosso sangue se derramou em tantos sonhos vencidos, em obras imperfeitas que erguemos quase a beijar o céu, para a seguir tombarmos com elas, comendo o pó da terra, misturando as lágrimas com a chuva. Quanto tempo, quanto amor, quanta dor… Como medir tudo isto, senão pela parte que hoje nos falta e que dói como se ainda existisse, numa saudade de náufrago que contempla o mar… 

Porque me dói tudo agora como se tivesse sido ontem? Como se hoje o mar devolvesse os destroços de um naufrágio há muito esquecido, voltando a reescrever a tempestade… Porque acalentamos o passado como se fosse tesouros, pérolas de dor que enfiamos como contas de um rosário, e usamos ao peito como troféus de guerra. 

Porquê? 

Porque dependemos de todas estas coisas para contar a nossa história. Porque desenrolamos o fio da nossa vida pelas veredas das derrotas, muito mais do que pelos cumes das vitórias. Porque a minha história não é a totalidade do que sou, mas explica o lugar que ocupo no mundo. Como desapegar-me de todas estas coisas, que são de mim, que são de ti e de tantos outros… Como ser livre neste exército de escravos do mundo? 

As coisas não são só coisas. As palavras não são só palavras e nenhum gesto morre sozinho. Há que lembrar para mudar e fazer diferente. Eu sou tudo isto e, muitas vezes, vou lembrar-me de todas as coisas que amei. E vou contar um pouco sobre elas, e vou escrever sobre elas em mim. E depois, vou pegar no futuro e escrever palavras novas. E ser de novo, uma e outra vez. A história não acaba aqui. 

O pó das estrelas 

Ontem fui passear numa noite escura, mais escura ainda aqui dentro. E as estrelas brilhavam longínquas, testemunho de um passado que já não existe, mas que brilha ainda num impulso antigo, na recordação do que um dia foi um astro maior no céu. Ontem peguei na bicicleta e fui passear o corpo numa noite fria. Queria expulsar os pequenos grilos de dentro, sussurrando ao meu coração. Queria o gelo da noite na minha alma, arrefecendo a minha dor, amordaçando a saudade num abraço gelado. E fui ao jardim, e a noite envolvia tudo numa quietude. Quis ser o riacho que corria feliz. Queria ser a cigarra debaixo da pedra. Queria ser tudo menos aquilo que sentia aqui dentro. Estava cansada de mim, deste ser em constante questão, como dois cães que se digladiam aqui dentro. Dois lobos famintos, solitários na estepe do meu coração. Comecei a balouçar a bicicletas em curvas longas, para prolongar o passeio. Não queria ir para casa encher-me de mim e de nada. A luz do candeeiro pairava sobre a minha cabeça. E eu ali, na vertigem definidora do momento em que sentimos a alma nua, despida pela noite escura. Senti-me a última pessoa no mundo. A última mulher magoada. O mais estéril dos seres, com o mundo no coração e o vazio nas mãos. Avancei a bicicleta devagar, como se o tempo pudesse parar um instante, pela minha vontade.  Parou. Cheguei a casa. Larguei a bicicleta junto à parede. E olhei as estrelas, numa prece silenciosa. E quis gravar este céu, mapeá-lo no meu coração, como pequenas migalhas de esperança a indicar o caminho. Quando estiver a precisar da noite, procurarei sempre as estrelas. A sua luz sobrevivente à distância e ao tempo, desafia  todos os impossíveis. 

Amar como os velhinhos

Amei demais. E amei uma quimera louca, uma utopia que vivia aqui dentro. Este monstro do querer ser e não do que se é. Amei este príncipe do nada, que ocupava tudo e que eu criei, com as minhas mãos, com a minha boca, com todo o meu ser dado ao sonho e ao calor dos dias de encanto intermináveis. Amei com a fé dos crentes em primeira viagem, quando as tempestades ainda não balançaram o barco. Amei como quem ama tudo o que nasce e é frágil, com a promessa de conquistar o mundo. Amei com pressa, com a ânsia de conhecer tudo, como um faminto à deriva perante um oásis. Amei tanto, que não poderei amar assim, outra vez. Amei uma mentira pensando ser a verdade mais pura, e proclamei-a como um vencedor perante o vencido, com o saque da batalha às costas e com o brilho da armadura ao sol. Não sabia então que a verdade é uma certeza íntima que fala baixinho, um misterioso sentir de liberdade, como um pássaro que voa como louco em cativeiro. A liberdade é estar bem cá dentro, com esta verdade que faz o coração bater mais leve e mais firme. Agora vou amar devagarinho, como quem ama as coisas difíceis e velhas, cheias de manias. Amar como os velhinhos, vendo tudo mas pensando só metade, deixando a história desenrolar-se a si própria. Amarei como quem espera a sucessão das primaveras, numa inevitabilidade paciente. Amar com a liberdade a clamar-me no peito, repetindo o meu nome baixinho, para nunca esquecer quem sou. Agora é a vez do amor dos velhos, da paz no coração, porque o amor dos jovens morreu na guerra.