Deixar afundar as pedras

Já esqueci as esquinas, as palavras, os lugares.
Já esqueci de que cor se pôs aquele dia,
Qual de nós se fez mudo e surdo
E desde quando e onde, nos tornámos às avessas
Um do outro, divorciados do mundo e de nós mesmos.

Já me esqueci do tempo em que não éramos estranhos,
Estrangeiros na nossa própria casa.

Esqueci, porque é demasiado vermelho, alto e longínquo
Para me lembrar,
Porque ficaram apenas fantasmas e sombras
De tudo o que vivi e senti.

É melhor assim, porque nada restou sem mácula.
Se é para lembrar com mágoa, mais vale deixar morrer.

Desejo apenas não me encontrar, mais tarde,
Com tudo o que fez ferida aqui dentro,
Devolvido com violência, como um espelho.
Como uma esquina desconhecida.

Desejo caminhar de novo, com o velho lá trás
E o novo à frente, como uma luz inaugural.

Cavalo de Vento

Hoje estendi as preces ao vento, as palavras cavalgando a brisa, os meus sonhos balançando-se no sopro do mundo. Fiquei um pouco a escutar a noite.
Vi a silhueta das casas, da igreja e das árvores recortando-se no luar.
Senti-me a única debaixo deste céu, neste exato momento em que penso isto, em que me resumo à consciência do aqui e do agora. Ainda é cedo para ser feliz, sussurro para mim, como um desejo feito segredo. Ainda é cedo para entardecer em esperança.

Ontem, na margem do lago

Folheava um livro e encontrei este texto, escrito por mim há uns seis meses atrás. Ainda me surpreendo comigo, pois o papel absorvia o que sentia antes mesmo de eu ter consciência dos meus sentimentos.
Está escrito a fogo no meu caderno invisível. É simples e verdadeiro.

Estou na margem do lago.
À volta, pequenas pedras, algumas largas e outras estreitas,
Espalham-se junto à água.
Ergo a cabeça:
Estendem-se as árvores até ao azul do céu.
A terra parece engolir o sol.
Cheira a pinheiro, a verde e à frescura da água.
Estou só. Respiro mais uma vez e fica tudo cá dentro:
as árvores, a água, o cântico das coisas.
Não quero, não desejo, não espero.
E apenas por um momento, sou livre.

Elogio da Transparência

Sou transparente, e não sei ser de outra maneira, falar de outra maneira, sentir de outra maneira, senão desta forma em que me exponho no palco solitário de mim, mas sem querer ouvir nenhum aplauso, nenhum aceno. Sou transparente como se respira ou se suspira, assim, naturalmente, sem se dar conta. Muitos me receitam o silêncio. Outros a reserva. Alguns por compaixão e muitos por pudor da dor do outro. Pois alguns se sustentam no parapeito da sua janela, e contemplam a minha transparência para dela retirar tudo, relatar todas as histórias, todos os acontecimentos. São como vampiros que se alimentam da verdade dos outros, sem jamais enfrentar a sua verdade. Sou transparente e é verdade que isso é natural em mim. E muitas vezes queria ser opaca e diferente. Mas a transparência é corajosa, é clarividente. Porque vejo a verdade em mim, a experimento sem pudor, de peito aberto, na emboscada, por vezes consigo chegar aonde outros não chegam, na sua escuridão, na sua elegância constrita, encerrada em si mesma. Este ser transparente é achar-se nu na rua mais percorrida do mundo, em plena luz do dia. É ser-se muitas vezes triste, ferido onde mais dói, quando não vemos de onde veio o golpe. A glória da transparência é ser-se livre, na mais fechada das prisões, o mundo.