Eu Sou

O verdadeiro Graal da vida, é tocar no que verdadeiramente somos, aprender a Nossa essência e guardá-la, cá dentro, deixando a porta entreaberta, entrando devagarinho e ocupando este espaço de paz, de amplitude infinita, de divindade e de unidade com a poeira das estrelas. Este palco maior que Eu Sou, como uma noz secreta dentro da casca, como a ninfa pequenina dentro do botão da flor.

Aprender, como estratégia de sobrevivência, ou pelo caminho da meditação, da prática de me observar, mesmo no olho da tempestade ou no deserto mais inóspito, a ver-me nua, sem formas ou limites, na vastidão da noite mais longa, sob a luz mais intensa, o que verdadeiramente sou. E o que sou, não é, definitivamente, a minha dor, a minha alegria, as minhas circunstâncias, quaisquer que elas sejam. O que eu não sou, absolutamente, são os meus fantasmas, as memórias saudosas ou dolorosas, as evocações de tudo o que não foi, os remorsos, as ausências. Eu não sou esta ferida, a minha ferida não é a totalidade de mim. Eu não sou os que amo, mesmo que este amor se sinta, por vezes, total, sufocante, um abraço feroz sobre o coração. Eu não sou este corpo, estas curvas suaves ou agrestes, este espelho impiedoso e mordaz. Eu não sou o meu riso, ou as minhas penas. Eu não sou os lugares distantes que percorri, em passos ou em sonhos. Eu não sou o caminho estreito da montanha, ou a chegada ao seu cume. Eu não sou a mesa completa, a minha família toda presente; nem tão pouco sou os lugares ausentes. Não sou a vida que por vezes jorra aos supetões, os inúmeros renascimentos que pari, de mim e das minhas cinzas. Não sou as mortes que olhei de frente, nem os momentos que lhe virei a face, por pudor ou por medo. Não, deveras, eu não sou o meu medo, esse poder alquímico de possessão, que tantas vezes se abate sobre mim e toma conta da minha mão, do meu olhar e do meu coração.

Aprender a destacar-me de todas estas coisas, a abandonar o apego visceral às coisas conhecidas e familiares, sejam felizes ou dolorosas, necessárias ou supérfluas, patológicas ou sanas. Descolar o meu centro das coisas, e ver, enfim, por fim e derradeiramente, o meu Ser, imenso, vazio, divino, quieto, como a quietude da montanha, em movimento perpétuo como os planetas, os cometas, entrando e saindo de todos os campos gravitacionais, atraindo, rechaçando, a flexibilidade é absoluta.

O meu Eu é, desde o início e para sempre. E quando o encontro e o reencontro, e consigo nele permanecer, por tempo não quantificável, vejo que sou Paz. E há quietude, e há eternidade e há amor por todos e por tudo. E respiro como a primeira vez que saí do útero materno.

Despe-te de todas estas coisas humanas. Aprende, pratica, observa e procura. Veste-te de divindade, pois todos somos Deuses disfarçados de Humanos.

Respira no Eu Sou, E sabe-te inteiro.

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Um barco de luz

Naquela noite, um barco de luz se balançava junto à costa. À deriva, riscava as águas escuras com a sua tímida luz.

Uma vaga enorme, de água e de tristeza se abateu sobre o barco. A sua carcaça soluçava violentamente, as bátegas de agua se abatendo sem misericórdia sobre o convés, a proa, toda a sua extensão pardacenta se confundia com o negro das águas e com o frio da noite.

E mesmo assim, a pálida luz do barco tremeluzia, desafiando a sua rendição as trevas.

E, mesmo depois da grande vaga passar, a tristeza colou-se ao barco como uma segunda pele, como um manto de cracas, cujo lastro pungente, a melancolia e a dor, permanecia no fundo das almas.

E entretanto chegou o dia. As luzes, os cheiros, as vozes. A cacofonia de vida limpando os resquícios da grande tristeza.

Se olharmos bem este barco, está lá o espectro da grande vaga escura, pairando docemente. Mas também estará luz, mesmo que baça e tremeluzente.

Às vezes, tudo o que podemos fazer é mantermo-nos à tona. Protegermos a nossa luz, para que jamais se apague. E galgar todos as ondas, não importa quão escarpadas, quão imensas, quão dolorosas.

Tudo isto passará. Apenas a luz permanece.

Conhece-te a ti mesmo

Conhece-te a ti mesmo.

Cada sulco, cada som, cada gesto.

Traça a tinta permanente o mapa da tua mente: como pensas, como desejas, como sonhas.

Anota no teu caderno invisível todas as linhas da tua história, tanto as tristes como as alegres. As vitórias estridentes e as penosas derrotas.

Com tudo isto, apreende o Ser que és, a cada momento, mudando tudo e permanecendo aos pedaços. É sobre ti que vais compondo essa lição.

Conhecendo-te, vais tomando os passos mais firmes, avançando inexorável e segura. Dona de ti, dona do mundo.

Nenhum recanto do universo é secreto, nem armadilha, nem refúgio de sombras.

Danças todas as músicas das esferas, porque nada te é desconhecido.

Ninguém mais te dita desfechos ou te condena o destino.

Conhece-te totalmente.

E serás a capitã do teu Ser, a mestre do teu destino.

Livre dos outros, livre de ti, livre do abismo. Voas eternamente.

Postais do Alentejo

Ao fim do dia, levo-te pela mão nas planícies douradas, em busca das flores azuis. Do céu, nuvens distantes como os males estão, longínquos e incólumes deste nosso amor. A luz derrama-se em nós e por dentro, como uma aura da natureza que se colou à pele. A terra batida levanta pó nos pés; é poeira das estrelas e não da morte. Os insectos afadigam-se a esta hora, com a paixão da noite porvir. E nós nesta quietude intensa, preparados para a fome que aí vem, nossa e dos bichos. A luz é líquida, como a água no ventre materno, impossivelmente terna. A candura da tarde que cai, gentil, no dia e nos corpos. Não há linhas rectas; apenas curvas sensuais do caminho. Guardam-se as alfaias. Bebem-se sôfregos dos vasos. Não importa a noite, se esta hora dourada é eterna.

Ari, escrito a fogo no meu caderno invisível.

O ritmo de Deus

Quando nos recordamos daquilo que está por dentro e que nos anima,

Da chama sem nome nem medida, que arde cá dentro

Do nosso rasto feito de pó das estrelas

Do eco forte da Primeira Explosão, batendo nos nossos ossos

Viver é plena satisfação

E cada átomo de felicidade, vence todos os dias de tristeza.

E, de cada vez que nos erguemos depois da Queda, que vemos mais alto e mais longe, que o nosso ombro é tudo o que o outro precisa e que o nosso abraço é cura para o coração

Recordamos quem somos, de onde viemos e para onde vamos.

E somos deuses. E dançamos com as esferas. E amamos para sempre.

E estamos no ritmo de Deus, estamos a chegar a Casa.

Pequenas Tragédias

Todos temos Pequenas Tragédias. Às vezes alguém parte, às vezes é uma janela a fechar, ou por vezes, é só uma página que se mantém em branco ou uma árvore por crescer.
Mas as pequenas grandes dores vêem sempre, tão certo como a luz e a sombra.
Nunca se explica ou se termina, propriamente, estas coisas de doer.
Só se deixam passar, como ondas, como brisa, e a elas se sobrevive, para depois se começar a viver, a sério.
E então, reescrever estas dores em coisas bonitas, em aprendizagens, em tatuagens coloridas, na Alma.
Numa roupa fresquinha de flores, que se veste mesmo não se sendo criança, num dia não tão quente. Apenas porque sim.
Continuar a viver e resignificar a dor é propósito suficiente.

Vencer o aquário… rumo ao mar

Começa com um dia perfeito de sol. Os risos e os sons habituais do mundo.

De repente é difícil respirar.

Um aperto no peito, uma inquietação nas mãos, um fraqueza de alma que me deixa a tremer.

E não se sabe de onde veio nem quando acabará.

Há apenas um bater descompassado do coração, que se impõe a todos os sons.

É então que faço o tempo abrandar uns segundos. O espaço estabiliza comigo ao centro, pernas afastadas para sustentar, raízes profundas a penetrar a terra.

Respiro uma e outra vez, bem fundo. Dói um pouco expirar, a princípio. Mas insisto um pouco mais.

Às vezes uma espada e um escudo se desenham nas minhas mãos. Endireito as costas, sinto uma força nova a percorrer a minha coluna vertebral, como um pequeno choque elétrico.

Imobilizo a minha mente e o meu coração no mesmo círculo seguro. O aqui e o agora, a margem segura do meu pânico.

Recuo do abismo e recalibro a bússola.

Dou um passo. E depois outro.

Eu sou capaz. Ainda continuo aqui.

E o milagre se ergue de novo sobre duas pernas.

À conquista de mim mesma.

Vitoriosa.

A paz das Coisas Selvagens

Quando o desespero do mundo me toma

E a angústia floresce no meu peito

Caminho na floresta, à beira do rio.

As árvores altas inclinam-se brevemente ao vento.

As nuvens reúnem-se no canto do azul céu

Os pássaros chilreiam algures, quase que ouço o restolho das suas asas.

A quietude da água encontra-me num senso de paz.

Uma sensação trepidante de frescura, um assombro sereno de quem se deixa ir.

Ao ritmo natural das coisas. Ao sossego depois da tempestade.

Ao ventre materno, quente e líquido, depois da vida áspera dos dias.

E as batidas do coração se aquietam na paz das coisas selvagens.

De alguma forma, estou em casa.

Os blues do desejo

Diz-me, Alice, porque estás triste?

Porque te demoras nas coisas, como se estivessem longe, ou partido há muito.

Porque os teus olhos têm peixes de pequenos aquários, sonhando o oceano longínquo.

Porque seguras as sementes nuas nas mãos, como uma promessa vã de flores

E fixas o vazio com avidez, com a alma ferida pelo desejo.

Porque querer dói, e não querer, é morrer devagarinho.

Vive depressa, Alice, mas não te demores no desejo.

Gasta todos momentos, não guardes nenhum na memória daquilo que podia ter sido

E não foi, afinal.

Vês, Alice, consome a tristeza com parcimónia. Não deixes que te receitem alegria como um qualquer remédio. Digere a tristeza, porque ela também é natural.

E depois, deixa entrar a luz de um novo dia.

Eu sou a Árvore

Hoje vi uma árvore de aloe vera enorme, crescida em todo o seu esplendor, na plenitude das suas possibilidades. Pensei como, erradamente, via o Aloe Vera como um cacto robusto de jardim, orgulhoso mas pequeno. E afinal, como cresceu, sem que lhe emasculassem a força viril, sem que lhe aprisionassem a semente vital ou lhe limitassem os movimentos. Ou mesmo, tendo ele próprio tomado conhecimento da sua verdadeira natureza, ousasse ele crescer, estendendo as suas cores, a sua robustez, o seu desafio à morte, à mediocridade e à escassez, debaixo do céu estrelado ou do sol ardente.

Quantos de nós acabam por ser arbusto de jardim, quando, cá dentro, somos árvores emancipadas de força, de altura que rasga o céu e aponta aos astros. Quantos de nós negam em si, as suas possibilidades infinitas, deixando que determinem os outros e nós mesmos, ilusórios limites de espaço, de propósito, de capacidade. Somos nós que deixamos ou que nos fazemos pequenos. Somos nós que abortamos estrelas, que não acreditamos que cada um, terá afinal, uma super nova para nascer.
Olhemos para nós como possibilidades… Como sementes lançadas ao vento, prontas a serem acolhidas, nutridas ou, desgraçadamente, abafadas em pedras, soterradas em terra rala, asfixiadas numa sede e numa fome nunca saciadas.
Sejamos o que podemos ser, em toda a medida.
Somos um sonho que se ergue em duas patas.
Que o deslumbramento não acabe nunca.

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