Não esquecer mas não guardar

Não quero nunca esquecer onde estivémos, os dois.

Lá, no jardim, dos silêncios
Lá, na beira da estrada, de mãos dadas,
A nossa sombra derrubada no chão, tremeluzente no calor.
Lá, na cama, nos lençóis remexidos, na descoberta de
Nós, à janela, a ver a luz a brincar nos prédios,
E os outros, ao longe.
Nós, nos sonhos invencíveis, na lua e em marte,
Eu 􏰀tinha as palavras, tu 􏰀tinhas o sorriso.
Só o tempo era nosso. O resto era para depois.

Não quero nunca esquecer onde estivémos.
Mas tenho de lhe largar a mão.

Pássaros feridos um dia levantam voo

Há muito que se pode dizer sobre a dor. A dor como uma onda que vem de mansinho, uma atrás da outra, sem dar tempo da areia secar, da pele recuperar do sal incrustado, que esgravata a dor num suplício infindável. A dor como uma tempestade, que se abate sem dar tempo para respirar, impregnando tudo com uma humidade de gelo,  cegando os olhos numa cortina branca de água. A dor como o último canto, do último espécime dos pássaros cantores, que se empala no mais fino dos ramos, antes que lhe morra a voz.  Não conhece a verdadeira dor quem não amou na mesma medida, desmesurada e perdidamente. Só conhece a dor quem amou tanto, quem deixou que o seu amor ocupasse todos espaços e todos tempos, até se consumir em desilusão. Neste mundo de paradoxos, não é possível conhecer a verdade, sem arriscar tudo por ela. Arriscar o amor e, depois, experimentar a dor. Tão alto e tão longo, assim é o esquecimento. Às vezes, quando pensamos ter resumido  a dor a um murmúrio quase habitual, algo nos lembra aqueles dias de total cinzento no céu e na Alma e, então, dói de novo, mas é uma dor diferente. Porque agora, sei que sobrevivi a tudo isto, sobrevivi a mim mesma, doente e ferida como nunca, e lutei e esgravatei a poeira dos meus sonhos vencidos, mordi e tatuei a negro e a vermelho invisível na Alma e na pele, e vivi até ver este dia, em que sinto que sou tão mais do que soma de tudo, em que, sedenta e faminta, bebi da minha dor e engoli a minha raiva. Sou hoje um pássaro ferido que levantou voo.

Nos dois lados da ponte

Galga todas as ondas
Escala todas as montanhas
Rompe todas as tempestades
Para fora, para o tamanho de tudo o que queres ver
Para depois da curva do mundo
Para ver, que estamos sós, e não há nada do outro lado da ponte.
O outro lado, está aqui dentro, ao virar da curva espinhosa de mim,
Dos meus erros, das minhas faltas, dos meus sonhos vencidos.
As ondas e as montanhas e as tempestades: e só eu dentro delas.
A vida avança e eu não posso fechar a janela,
A única coisa a fazer é rolar com estas coisas, navegar por entre a sua força e, por momentos, ser esta bravura que descobre o mundo.
Sou o barco que quebra e persiste.
Amei com o bom e a candura em mim
Mas nunca irei mudar o mar ou a montanha…
Nem a nós. Só posso mudar… Eu.

A arte de escolher o caminho mais longo

É fácil ser santo no cimo da montanha, no sentir eremita de quem se afasta do mundo.

É fácil manter-se à tona se nunca se tocar na água, evitando o mergulho.

É fácil não sofrer, basta não sentir.

Escolher a margem será sempre o caminho mais fácil e mais seguro.

Mas escolher o que é fácil não é viver. É ser-se moribundo, é viver dormindo na ignorância cega, numa imbecil tranquilidade, na absoluta solidão, no desperdício desta oportunidade na Terra. É ser parado, lago estagnado e estéril.

Foi para isto que viémos? 

Escolher sentir, tocar, cuidar é incomensuravelmente mais difícil. Há dor e há perda e há risco. É caminhar na beira do penhasco com os bolsos cheios de pedras, com as mãos nuas, com a cabeça confusa. Mas é arte. É a verdadeira Arte, viver doendo, amando, caindo e levantando… escolher o caminho mais longo, e levar pouco na bagagem. O segredo talvez seja ser simples… deixando cair o que já não serve, não cabe e pesa na Alma e continuar, sempre. 

Escolher o rio tumultuoso e esperar os lagos calmos, o raio de luz por entre as nuvens que nos bate em cheio na face, a mão que nos aperta o coração. Sentir o pulsar monstruoso do coração quando se ama e se teme perder. Isto é viver. E dizer no fim, valeu a pena.

Monstros & Homens

Sacudir o monstro de dentro. Pensar que já não o tenho tenho. Sentir que já o perdi. 

O monstro da saudade, a sombra do medo. O soluço da verdade.

Caminhar um pouco mais. Pensar que já estou inteira. Ver um pedaço meu ali na areia.

Haverão sempre monstruosos pedaços de mim em todos os lugares que amei.

E eu sou mais do que todos eles. Sacudi os monstros e os homens, aqui de dentro.

Eu sou a vontade que nunca morre. A vitória do que resiste, e renasce.

Eu sou hoje o que subsiste em mim, apesar de tudo. E muda, e cresce e nunca esquece.

Mas deixo os monstros lá trás. É de homem carregar com eles. E eu sou uma mulher.