Fui ver o entardecer e caminhar um pouco por entre as árvores. Há dias que nos recordam mais os fracassos e nos diminuem as vitórias. São esses dias que temos de reescrever cá dentro, com coisas simples que sabem bem. Fui caminhar à hora em que o sol se aproximava do horizonte. E uma calma permeava tudo em volta. Algumas pessoas passavam, uns pássaros trinavam distantes e os insectos zumbiam baixinho. Havia um vento suave, de norte, que trazia gotículas de água do rio, que se ouvia como um murmúrio longínquo. A luz lambia-me a pele como um beijo dourado, e o vento entrançava-se no meu cabelo. E eu sentei-me na pedra em assombro e em silêncio. É bom viver e não há lugar no mundo como a natureza para nos fazer sentir gratos por existirmos.
Há dias como hoje em que sinto tanto o peso do lixo que ainda carrego às costas, faltas e danos que não são meus na sua origem e que eu, teimosamente, continuo a carregar como bandeira da minha perda. Entardeceres como este, na sua luz despojada de todo orgulho e gloriosa na sua despedida, fazem-me pensar que falta pouco para aliviar este fardo inútil, como se o laço que me prende a ele fosse fácil de desatar. Talvez seja. Mas hoje ainda não consigo libertá-lo. Ainda não consigo perdoar. Mas volto a tentar amanhã. Pelo menos sei que este fardo não me pertence. Nem pertence aqui, a este lugar e a esta hora de luz, em que me vejo na verdadeira radiância do meu ser. Posso ser leve como o entardecer de hoje. É só tentar e nunca desistir. Haverá outros entardeceres.
Mês: Junho 2016
Breve poema de amor desastrado
Palavras de amor escritas em papéis manchados de café
Beijos roubados aos cantos dos olhos e à ponta do nariz
Pés calcados na dança mais bebêda da noite, no alto luar
Mãos que se tocam debaixo das mesas, a coberto da luz
Amores de desastre, aos trambolhões nas ruas sinuosas
Sem horizontes limpos, nem campos verdes sem fim.
Amor nas rochas, nas veredas, nos penhascos, na lama
Amor sem medida, sem nexo, sem melodia
Desbravado como bandeiras rasgadas, mais altas
Aos borbotões, arranhado na pele, gravado a fogo no coração.
Amor com tempestade nos gestos, com intempérie nos sentidos.
Amor porque sim, sem pensar onde, nem como, nem porquê.
Amor hoje e amanhã. Mesmo que por um segundo.
Amor já, que anoitece cá dentro e faz frio sem ti.
Deixar o medo morrer
Depois de atravessar o mar vermelho, cansada, ferida e traída, depois de rasgar a água à conta dos meus braços e pernas, do meu corpo marcado pela desilusão, com as histórias de encantar aniquiladas pela verdade, absoluta, levantada do chão das mentiras, do peso do tempo imenso em ilusões, ergui-me a custo e comecei a caminhar. Agora, inteira, eu ocupo todos os espaços em mim, mesmo as caves e os sótãos do passado, mesmo os caixotes como túmulos do amor amordaçado, do silêncio de lágrimas, do gesto interrompido. Eu ocupo os meus espaços, a minha consciência em expansão, como um universo de possibilidades, de remotos milagres e de minúsculos prodígios. Estou exactamente onde deveria estar, teço a minha história e não deixo ninguém escrevê-la por mim.
Libertei-me do medo.
Medo da solidão, da diferença, da dor, da morte e do tempo. Posso sofrer, mas jamais me detenho nos nãos e nos porquês. Continuo, com a certeza de que tenho de usar o que me cabe, a cada momento, e criar o melhor de mim mesma.
Liberto-me do medo e não me imobilizo mais sobre o que não foi e o que não será.
A certeza de que o agora e o aqui está sempre certo, liberta-me para viver… E assim nascem estrelas de buracos negros.
Pássaros feridos poderão sempre voar.
Lavar as montanhas
Lavar o meu amor como se lava as montanhas, com a chuva que derrete a neve dos picos, numa avalanche branca que arrasta os cadáveres do tempo. Lavar o meu amor até à sua forma mais pura, mais limpa, mais original. Lavar até ao íntimo, deixar que tudo se renove por dentro e não mais sirva o que está por fora. Há uma estranheza em voltar aos lugares aonde já se foi feliz e onde agora tudo está vazio. É uma pequena tristeza, uma pequena morte. É como tentar vestir uma roupa que já não serve ou que está velha. Quando lavamos a montanha de nós mesmos, escalamos o seu cume e começamos a descer, nunca mais seremos os mesmos de outrora. E isso também é bom. É uma promessa. Mudamos de pele e abandonamos o casulo para sempre. Começo agora a pintar as montanhas com as minhas cores. É bom chegar a este lugar, mesmo sabendo que não poderei ficar. Chegar à montanha é compreender que esta é apenas o primeiro monte da serra. Há que continuar a caminhar.