Ontem fui passear numa noite escura, mais escura ainda aqui dentro. E as estrelas brilhavam longínquas, testemunho de um passado que já não existe, mas que brilha ainda num impulso antigo, na recordação do que um dia foi um astro maior no céu. Ontem peguei na bicicleta e fui passear o corpo numa noite fria. Queria expulsar os pequenos grilos de dentro, sussurrando ao meu coração. Queria o gelo da noite na minha alma, arrefecendo a minha dor, amordaçando a saudade num abraço gelado. E fui ao jardim, e a noite envolvia tudo numa quietude. Quis ser o riacho que corria feliz. Queria ser a cigarra debaixo da pedra. Queria ser tudo menos aquilo que sentia aqui dentro. Estava cansada de mim, deste ser em constante questão, como dois cães que se digladiam aqui dentro. Dois lobos famintos, solitários na estepe do meu coração. Comecei a balouçar a bicicletas em curvas longas, para prolongar o passeio. Não queria ir para casa encher-me de mim e de nada. A luz do candeeiro pairava sobre a minha cabeça. E eu ali, na vertigem definidora do momento em que sentimos a alma nua, despida pela noite escura. Senti-me a última pessoa no mundo. A última mulher magoada. O mais estéril dos seres, com o mundo no coração e o vazio nas mãos. Avancei a bicicleta devagar, como se o tempo pudesse parar um instante, pela minha vontade. Parou. Cheguei a casa. Larguei a bicicleta junto à parede. E olhei as estrelas, numa prece silenciosa. E quis gravar este céu, mapeá-lo no meu coração, como pequenas migalhas de esperança a indicar o caminho. Quando estiver a precisar da noite, procurarei sempre as estrelas. A sua luz sobrevivente à distância e ao tempo, desafia todos os impossíveis.