Acordo com o sino ao longe, cada badalada como o bater inseguro do meu coração. Dolorosamente viva, por um momento, a dor é a primeira sensação do dia. Depois, lento, o desenrolar da pele sobre os membros, os músculos que se imobilizam sobre os lençóis, numa impressão amarrotada do movimento. A surpresa de estar viva, abre uma alegria pequenina, como um nenúfar sobre o pântano. A cada inspiração, o descompasso do meu coração e o silêncio da tua ausência, junto à minha face vem dar-me um beijo. Ergo os olhos para a janela, e os feixes de luz propagam-se oblíquos no quarto, com o pó em suspensão, como às vezes retenho o fôlego até explodir dentro do peito e transbordar pela boca e nariz, neste abandono do lamento de estar aqui e tu não estares comigo. Meu amor, nesta manhã de bandeiras desfraldadas ao vento, de pássaros feridos de uma só asa, equilibrando-se impossíveis nas árvores, vou levantar-me e dar o corpo à languidez dos segundos, porque está calor e o tédio invadiu todos os lugares. Ébria de saudade, cambaleante de desejo, levanto-me e sigo a luz que se esbate debaixo da porta. Que eu nunca esqueça a bússola de luz, o norte iluminado para sempre com a silhueta do meu amor, que se vê desde o outro lado do mundo. Sento-me ao pé da lembrança do meu sonho de ti, fecho os olhos com força e desenho a vivas cores, neste sítio só meu, por trás dos meus olhos, o retrato de mim quando te amava. E entro nele, como se entra num bosque encantado, e cada pássaro, cada flor e cada árvore, é uma maravilhosa aventura. Falta aqui tudo o que amámos juntos, e agora morreu e tenho de amar outras coisas, pequenas e grandes. Tenho de ser a formiga que se afadiga por minúsculas migalhas, sem perder a consciência de si neste mundo de gigantes. Que posso eu fazer, senão continuar a viver, sabendo o que aconteceu… Contar histórias novas à lua, abandonando a minha face lunar na noite mais escura e suspirar o dia de amanhã?