Sou como uma cebola
Macia de madrepérola
Infinitas camadas, rebordos e bolsas
Pele fina como papel, descasca com precisão cirúrgica ou, com brusquidão,
Bocados avulso de mim.
Mas o que fica, por entre as entranhas, escondido, obliterado por uma consciência enganadora, que pensa que tudo sabe, tudo vê, tudo antecipa,
O que fica, chama-se trauma. E é uma memória feita de vísceras, de sangue e de suor,
E que apenas responde a dois ou três chamados: ao eco da incerteza, da dor e da exaustão. E esta memória feita corpo, pele e cabelos, salta para nos salvar do monstro que no passado nos fez tanto dano.
Mas a maior tristeza, ou benção, é já não estar tigre dentes-de-sabre nenhum ao virar da esquina. Estão apenas as sombras e os fantasmas do passado.
E assim, ingenuamente, pensei, estás curada, e esta cebola que sou está firme, densa e indestrutível.
Mas afinal estou às camadas e, por baixo, entre e por cima, estão as memórias de dor.
E agora tenho de descascar esta cebola com amor, com compaixão, a mesma que dedico ao meu bebé, à minha vida em mudança, às brutais vagas que se abatem sobre mim.
Pedir ajuda, esperar ajuda… amar este corpo e estas memórias de dor que apenas me querem salvar deste monstro invisível. Oh corpo, oh corpo eu te amo. Tenho de dizer-lhe que está seguro, mas não sei como, sem me enterrar sem velório, sem me cobrir até ficar invisível.
E recordo… tenho de galopar estas ondas gigantes, uma após a outra. E amar me para me curar.
E libertar… libertar o monstro é libertar o cavaleiro defensor.
Eu estou bem. Eu vou ficar bem. Ouves-me corpo? Acaricio-te timidamente, camada por camada, pele, músculo, coração, e quero que me ouças. Eu te amo e estás seguro.
Descascar esta cebola com amor.
Em frente dissecando a memória. Em breve, oh em breve, já não me poderá ferir.
Vou ficar bem. Bom Combate a todos, às cebolas por dentro também.